quarta-feira, setembro 21, 2005

Clarice. Aurélio.

- Prá mim? Pouco me importa. É que nem aquele poema do Pessoa, sabe qual?

- Tá vendo? É isso que me irrita em você! Essa mania de não levar um assunto adiante, esse seu jeito de sempre sair pelas beradas! "Diálogo de referência" e eu aqui, de mala na mão te dizendo que vou embora. Hunf.

(Ele desvia os olhos do livro que estava em suas mãos e leva-os até a mala postada no chão ao lado de um par de pés. Sobe o olhar calmamente até fixá-lo nos outros dois olhos que estavam na sala.)

- Tô saindo pelas beiradas não. É que realmente não me importa. É sua a vontade de ir? Porta e rua, tchau e bença. Coisa chata é estar-se preso por falta de vontade. Porque, se for daquele jeito que o Camões coloca, a história é outra, cê num acha?

(Ela bufa e faz levantar uma mecha de seu cabelo, que sobe até a altura dos olhos prá, em seguida, voltar rapidinho a seu lugar.)

- Sempre bancando o forte, né? Vai dizer que não te dói aí dentro saber que eu vou e não volto, que lá fora eu me arranjo com outro, que aí eu não vou ser mais só sua.

(Ele pensa por um breve segundo e segue com os olhos ainda no livro.)

- Hum... Só me incomodo de ter de dormir sozinho. Tem feito frio por aqui, sabe. Mas, quanto ao que você fará, é teu o corpo, não meu. Além do que, em relação a ciúme você sabe que eu nunca fui nenhum Bentinho, né?

- Ah não, não. Pára Aurélio. Pára logo, antes que você comece a tagarelar sobre esse tal Dom Masmurro outra vez.

- Masmurro não, Clarice; É Casmurro, com cê.

- Bah! Que seja! Isso só faz diferença prá você, que vive esses livros, que vive dentro deles e esquece daquilo que conquistou aqui, fora das páginas. Você não percebe a gravidade das coisas? Eu sou a sua menina, poxa. Eu te amo, você tem um compromisso a zelar comigo! Não é possível que você seja tão frio!

- Ííí... Lá vem você com esse papo de "Pequeno Príncipe" outra vez. "Tu te tornas responsável por aquilo que cativas e blá blá blá..." Já te falei, Clarice. Isso é livro de Miss, isso é sub-literatura. Cê não pode levar essas coisas tão a sério...

(Clarice olha no fundo dos olhos de Aurélio e sente a raiva tornar rubras as suas bochechas. Um fio gelado se escorre por uma linha que vai da nuca às suas costas, e as pernas deixam de se firmar com precisão. Ela Salta no sofá e, depois de puxar os cabelos, socar o estômago, arranhar o rosto e estapear Aurélio - não sem soltar gritos e urros e uivos - , toma o livro que ele tinha em mãos e começa a rasgar as páginas e jogá-las pro alto, pros lados, pro chão, pra si. Ao se cansar, sem dizer mais palavra, apanha a mala do chão, passa da porta e ganha a rua.)

(Aurélio permanece sentado no sofá, contemplando pelo chão da sala os destroços a que se reduziu seu livrinho de bolso. Suspira pesadamente, e apoia a cabeça na mão direita.)

- É, até que eu gostava dela. Tinha alguma coisa, que eu nunca soube bem o que, mas que me lembrava insistentemente a Lispector...

domingo, setembro 18, 2005

. (ponto)

http://www.olhares.com/eu_e_o_pb_ii/foto326881.html

Estou me sentindo como um .
apenas um .
um simples .

Se é uma visão negativa?
não sei

Pode ser um . como um .
ou um . início de uma ________

Mas é um .

l> história de uma gata - vanessa da mata

Agora: de pijama e amando o tempo nublado.

Como me sinto

Frei Betto *

Adital - Amigos indagam como me sinto frente à atual crise política. Sabem que dediquei os últimos trinta anos de minha vida à construção de um novo projeto libertário que emancipasse milhões de brasileiros da miséria e da exclusão. O que sinto? Uma "tristeza d’alma", como declarou Chico Buarque a 23 de agosto, em Passo Fundo, na Jornada Brasileira de Literatura. Sensação corrosiva, ideais fraudados, sonhos roubados, esse gosto amargo de frutos apodrecidos. Um pequeno núcleo dirigente do PT conseguiu em poucos anos o que a direita não obteve em décadas, nem nos anos sombrios da ditadura: desmoralizar a esquerda.

Ainda assim, não me corrói o abatimento, nem a desesperança anula-me a fome de justiça. A inquietação subjetiva aperta o coração, mas não faz sangrá-lo. A vida me ensinou a ser espectador do próprio sofrimento. Distanciamento psicológico aprendido ao assessorar José Celso Martinez Corrêa na montagem de "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, em 1967. O ator encarna o personagem sem perder o domínio sobre ele. Não sucumbe à criatura, como queria Mefistófeles.

Não diferia muito disso o que presenciei encarcerado entre presos comuns no Carandiru. O torturado driblava a própria dor. Pauladas e choques elétricos maceravam-lhe o corpo sem decompor o espírito. Gritos lancinantes ressoavam das cordas vocais, à semelhança de birras infantis desprovidas de lágrimas. Habituadas ao sofrimento, as vítimas pareciam flutuar acima da carne ensangüentada. Muitos se antecipavam ao martírio rasgando a pele com giletes e estiletes, cobrindo-se de púrpura para o macabro rito sacrifical.

Os anos de luta clandestina, de cárcere, de convivência numa favela capixaba, de atuação pastoral junto aos mais pobres, infundiram-me a desilusão de esperar coincidir meu tempo pessoal com o tempo histórico. Ao contrário do que apregoavam as quimeras esquerdistas, convenci-me de que o socialismo ao alcance das mãos não passava de miragem. O processo de humanização, o acesso a um patamar civilizatório melhor, no qual toda pessoa sentir-se-á engrandecida de dignidade, ainda levará longos anos, até que se supere o acúmulo de bens e de poder como suprema ambição, valor prioritário dessa nossa conflitiva convivência social. Na posse exacerbada busca-se, em vão, a imortalidade, e os vinhos do Olimpo embriagam-nos dessa maldita pulsão de querer figurar entre os deuses.

Nos porões da humanidade aprendi por que na floresta os tigres se movem à noite. Não buscam a luz, nem se deixam inebriar pelos primeiros raios do alvorecer. Nutrem-se do que vislumbram em plena escuridão. Basta-lhes a magia das estrelas e a certeza de que a noite é apenas um intervalo entre dois dias.

Não é o poder, a vitória, o lapidar cartesiano das ideologias que movem meus passos. É o escândalo da miséria, a vergonha da pobreza, o sofrimento de meus semelhantes, a razão dessa invencível teimosia em juntar cacos, costurar retalhos, começar de novo, refazer o caminho, ainda que a roda do moinho deixe a impressão de que nada sai do lugar, tudo gira em torno de um mesmo ponto, nessa cíclica labuta de Sísifo sobrecarregado de esperanças abortivas.

Venho de um povo peregrino. Venho da confiança de Noé na reinvenção do humano, da persistência dos hebreus na travessia do deserto, do desalento de Elias clamando pela morte, do aparente fracasso do Nazareno dependurado na cruz. E trago em mim a marca indelével do pecado original. Sei que novos projetos exibirão fraturas, sonhos virarão pesadelos, o militante de hoje será o arrogante de amanhã. Se os coxos não tropeçam é por prestarem maior atenção aos acidentes do percurso.


Ainda assim, salva-me do ceticismo a fé no ser humano, os avanços históricos, a proclamação dos direitos humanos, a indignação coletiva frente à corrupção e à injustiça, o repúdio à guerra, à escravidão e à tortura, a progressiva conquista de cidadania e democracia. Salva-me a genética bíblica do grão de mostarda - a menor de todas as sementes engendra uma árvore frondosa onde os pássaros se aninham.

* Frei dominicano. Escritor.

http://www.adital.com.br/site/noticias/18465.asp?idioma=PT&cod=18465